Beira Interior

Apontamentos gastronómicos
sobre a Beira Interior

Do ponto de vista gastronómico, a Beira Interior apresenta uma diversidade de produto difícil de igualar no território nacional. Património micológico sem par; pastorícia de proximidade vertida em declinações culinárias de grande gabarito e ao mesmo tempo prodigiosa nos lacticínios que todos os dias produz; cozinha de peixes de rio saborosa e clássica; leguminosas de antologia como é o caso do feijão-frade que aqui tem a sua sede; a maravilhosa raça jarmelista, bovino outrora utilizado na lavoura, hoje fonte de uma das carnes mais saborosas que temos; queijos de grande talante que desde o requeijão ao queijo velho têm desde sempre utilizações específicas outros tantos momentos especiais de consumo; ensacados, enchidos, presuntos e demais fumeiro únicos no mundo inteiro; farinhas de trigo, centeio, milho que produzem a imensa e gloriosa panificação que tanto e tão bem veneramos. Há que não esquecer o bacalhau, foram muitos os que daqui partiram rumo ao Mar do Norte para fugir à fome e à míngua de há cerca de cem anos. E há que venerar a gloriosa faixa raiana de terreno que nos liga a Espanha, de que muita da história está ainda por lavrar.

Caldos, sopas e cogumelos

A chamada cozinha de pastor corporiza em si mesma a glória da proximidade que é por sua vez o grande reduto da cozinha tradicional portuguesa. O grão-de-bico é a leguminosa mais antiga, como de resto acontece em todas as gastronomias mediterrâneas, ao longo dos últimos 3 mil anos. O arroz foi sabiamente introduzido a sensivelmente três quartos do percurso e numa altura a que nesta escala de tempo podemos chamar recente, integrou-se a batata na base da nossa alimentação. O caldo de grão - sopa de carne com grão - é ainda hoje um prato identitário da Beira Interior, presente no quotidiano dos seus lares. O mesmo se pode dizer das sopas e guisados de feijão - catarino, branco e feijão-frade sobretudo - a que lentamente se foi juntando massas diversas e hortícolas. As famílias cantarelus, boletus, tuber e amanitas têm fortíssima representação nas extensões florestais da região, e como tal estão presentes nos livros de cozinha antigos e modernos, com um rendimento de sabor e poder de nutrição impressionantes. Está aqui uma riqueza natural reconhecida em todo o mundo.

Queijo

Os altos graníticos da Serra da Estrela, com as suas forragens únicas, dão nome ao queijo que é um dos nossos emblemas mais identitários, merecendo bandeira à porta de cada português. Produzido inteiramente a partir de leite cru de ovelha, coalhado com cardo natural e lentamente estagiado até chegar às configurações de cura pretendidas, é um dos melhores queijos do mundo. Não menos forte expressão rústica têm os queijos de cabra e os queijos à cabreira, mistos de ovelha e cabra, e o queimoso, assim chamado pelo toque picante que incorporam e que ao mesmo tempo os tornam interessantes pela novidade. Todos no entanto têm as suas comunidades de apreciadores bem estabelecidas e definidas.

Peixe

Aprecia-se junto aos rios frescos e de correntes fortes o sabor e qualidade dos peixes de rio que vigorosos e seguros sobem os cursos vibrantes de água doce para desovar. A truta tem particular expressão e graças a projectos sustentados de equilíbrio com o meio ambiente e reprodução em cativeiro salvou-se da extinção. Excelente e clássico receituário, que vai das simples trutas grelhadas a caldeiradas riquíssimas em sabor e valor nutritivo, passando por pratos sofisticados de trutas com amêndoas e outros frutos secos, quando não mesmo assados em algas marinhas. Além das trutas, a experiência de uma boa caldeirada de rio é inesquecível e deixa saudades em quem a faz. É a festa fluvial que muitos portugueses do arco atlântico desconhecem ainda. O bacalhau salgado e seco tem lugar de destaque na história da alimentação, em dias de festa não se dispensa e no quotidiano marca frequentemente presença nas mesas das famílias, espelhando o estatuto de fiel amigo que o país inteiro lhe reconhece.

Fumeiro

O porco é fundamental na alimentação e na economia regional da Beira Interior, albergando mesmo um dos principais núcleos da produção nacional de presunto. A cura pelo fumo é a técnica de conservação mais frequente em Portugal e a vasta salsicharia que produz está bem enraizado nos hábitos alimentares das casas da Beira Interior. Merecem destaque pelo quanto têm de diferente as farinheiras, que em vez dos tradicionais ensacados de farinha crua e que se levam a cozer antes de se utilizar, por estas latitudes levam pão, juntamente com o tratamento de unto e especiarias que lhes aumentam o tempo útil de vida. A raiz está nas aparas de pão, ossículos, carnes, toucinhos e vísceras que se iam acumulando na cozinha para mais tarde se cozer, dando origem a pratos de subsistência. O ensacado da fina e frágil bexiga de porco dá origem a uma peça única da alimentação portuguesa, o bucho raiano. Deve ser cozido em lume brando para não rebentar e para reter todos os sucos dentro, servido com batata cozida é delicioso. Os maranhos da sertã, outro ensacado, mas em bucho de borrego ou carneiro, levam arroz, hortelã e outros ingredientes, mas são produzidos crus e não aguentam muito tempo longe da mesa, e que por isso fazem as delícias de novos e velhos nas famílias. Chouriços com ou sem ossos, chouriças e morcelas são únicos na região a animam qualquer cozido com o brilho dos seus sabores e especificidades.

Carnes

Quem não conhece a vitela da raça jarmelista, deve visitar a Beira Interior e conferir a qualidade dos seus cortes, cozinhados e possibilidades. Trata-se de uma raça autóctone que era utilizada na lavoura e no transporte de carga, vigorosa e de musculatura rija, que passou a ser introduzida na cadeira alimentar humana, à medida que a mecanização foi sendo adoptada. A carne de porco, nos cortes menos nobres - esses iam e vão para o melhor fumeiro - também foi sempre utilizada, em assados e estufados longos. O cabrito saltarilha feliz nas escarpas graníticas e constitui o assado mais popular e representativo de toda a Beira Interior, secundado pelo também apetecido borrego, ou anho. Sempre que se fala de forno subentende-se o forno a lenha, o que confere sabor supremo a todos os preparados a partir de qualquer das primícias, cabrito ou anho. As chanfanas, feitas a partir de cabra velha, são outra glória da cozinha da Beira Interior. Na caça maior, têm forte expressão o javali e o veado, e na caça dita inferior, a atenção vai mais para a perdiz, a codorniz, o coelho e a lebre.

Doces e frutos

O mel é utilizado em inúmeros pratos e convive bem no palato beirão com temperos fortes e carnes de sabores pronunciados. A broa de milho é o acompanhamento mais frequente dos caldos e pratos de tacho e os pães produzidos artesanalmente são eles próprios também processados. Coalhadas, tigeladas, arroz-doce sem gemas e leite-creme são presença diária na mesa da família média da Beira Interior, a par de uma doçaria conventual de grande talante, reservada para os dias festivos. No capítulo frutícola, estamos em território de luxo para as melhores cerejas, peras e maçãs do país.

Textos da autoria de Fernando Melo. Obrigado