Beira Interior

Dois mil anos de tradição na produção de vinho

A Beira Interior é uma extensa região vitícola que confina, a norte, com o Douro, a sul com o Alentejo, a poente com o Dão e a nascente com a Sierra de Salamanca, onde hoje se produzem alguns dos mais desafiantes vinhos de Espanha. Rodeada de vizinhos tão distintos a conclusão só pode ser uma: o vinho da Beira Interior tem de ser bom, não obstante ser pouco conhecido dos portugueses.

A tradição vitícola da região remonta à época romana, como alguns dos seus tesouros arqueológicos comprovam. Após a pacificação do território os romanos instalaram-se, criaram grandes villae e dedicaram-se à agricultura, particularmente ao cultivo da vinha e fabrico do vinho. Há a ideia que essa atividade ocorreu essencialmente no Alentejo, onde ainda hoje se faz vinho em talhas de barro segundo o “processo romano”. Porém, a norte do Tejo os vestígios romanos associados ao vinho são raros e a tradição de produzir vinho em talhas, se é que existiu, esfumou-se há séculos, levando a pensar que o vinho poderia ter-se vulgarizado apenas no período medieval. Uma notável descoberta arqueológica, em pleno coração da Beira Interior, demonstra que também a norte do Tejo se produziu vinho romano em quantidade superior à necessária para o autoconsumo e, por certo, com qualidade reconhecida. O local do achado situa-se no concelho do Fundão, no sítio da Torre dos Namorados, Quintas da Torre, muito próximo da via romana que ligava a capital da Lusitânia, Emerita Augusta - a atual Mérida - a Bracara Augusta. Embora o local ainda não tenha sido detalhadamente estudado, as primeiras prospeções permitiram identificar estruturas tecnológicas para a produção de vinho, e provavelmente de azeite, de qualidade excecional. Uma cella vinaria e dois avantajados contrapesos cilíndricos, de grandes prensas de vara, permitem imaginar uma produção de vinho em grande volume para comercialização no exterior. Porém, a descoberta mais sensacional foi uma caixa construída em tijolo com fragmentos de tegulae [telhas], revestida a argamassa de argila, onde se encontraram milhares de grainhas carbonizadas e películas de uvas, cujo estudo, presentemente em curso, talvez permita desvendar os segredos das videiras romanas e avaliar o seu grau de parentesco com as castas atuais da Beira Interior. Porém, os achados não ficaram por aqui, pois foram exumadas peças notabilíssimas que estão hoje em exposição no Museu Arqueológico do Fundão, entre as quais uma talha romana intacta, revestida interiormente com pez, destinada à fermentação e armazenagem de vinho. O espólio recolhido aponta para uma ocupação entre a 1.ª metade do século I d.C. e o início do século V d.C.

Os poucos estudos arqueológicos mostram que é muito deficiente o conhecimento da presença romana na Beira Interior, mas há referências à existência de mais estruturas romanas para a produção de vinho noutros locais próximos da via romana já referida, como em Terlamonte (Covilhã), Quinta da Fórnea (Belmonte), Prado Galego (Pinhel) e Vale do Mouro (Mêda) permitindo pensar que a Beira Interior seria, há cerca de dois mil anos, uma região vocacionada para a produção, e exportação para fora da região, de vinho de qualidade.

Vinho medieval

A queda do Império Romano, a invasão visigótica e, posteriormente, o domínio árabe, provocaram profundas alterações na sociedade e, naturalmente, em toda a estrutura produtiva, incluindo o vinho. De uma sociedade organizada e controlada de forma global, passou-se a uma sociedade mal estruturada e em constantes lutas de poder, onde cada aglomerado populacional tentava sobreviver como podia, a expensas próprias. Talvez seja excessivo afirmar que os vestígios arqueológicos das Quintas da Torre parecem confirmar a extinção da produção (industrial) de vinho no local, mas o certo é que os vestígios posteriores – como o lagar rupestre escavado na rocha da Freixa – apontam para uma produção de autossubsistência, recorrendo a incipientes lagares rupestres escavados na rocha e sistemas de prensagem muito mais arcaicos que os da época romana.

A Beira Interior, a exemplo do interior centro e norte do País, está cheia de lagaretas escavadas na rocha, que testemunham a continuidade da produção de vinho desde a época romana, embora num registo diferente. Está por fazer o inventário e estudo desses lagares, mas as várias centenas conhecidas atestam a vocação vitícola e o consumo de vinho desde tempos remotos. Uma recente publicação dá conta de 51 lagares rupestres só na envolvência da aldeia de Monsanto (Mons Sanctus) que evidenciam uma pulverização da propriedade rural, uma produção artesanal de vinho e, muito provavelmente, o abastecimento de vinho à vizinha e importante comunidade de Idanha-a-Velha.

Outra particularidade do vinho medieval assenta no envolvimento da Igreja e ordens religiosas, particularmente a partir do século XII, com vista a controlar a produção do “sangue de Cristo”. O Convento de Santa Maria de Aguiar, fundado por eremitas no século XII e depois integrado na Ordem de Cister teve, certamente, um papel importante nos destinos do vinho da região, pois os monges viticultores devem ter tido um papel decisivo na escolha das castas, visto algumas delas terem ascendência de castas antigas francesas, como o Marufo e Folgosão.

Um encepamento originalíssimo

Numa região tão extensa como a da Beira Interior é natural que as castas predominantes das várias sub-regiões sejam diferentes e reflitam as dinâmicas criadas com as regiões vitícolas vizinhas. Assim, na zona norte sente-se a influência do Douro, Trás-os-Montes e Galiza, na zona sul deteta-se a influência do Alentejo, a poente reconhece-se a influência do Dão, a sudoeste o efeito do Ribatejo e a nascente a presença da

Sierra de Salamanca, onde a casta Rufete ainda hoje é a mais importante. No entanto, muitas dessas diferenças são apenas nos nomes das castas.

Por alturas de 1850, antes da devastação vitícola causada pelo oídio e filoxera, as principais castas das várias sub-regiões seriam as seguintes:

Sub-região Castas brancas Castas tintas
Pinhel Codão (o mesmo que Códega ou Síria), Pardo (?), Fonte da Cal, Malvasia e Rabo de Ovelha Rifete (Rufete), Marufo, Bastardo, (Tinta) Francisca e Donzelinho
Figueira de Castelo Rodrigo Códega e Estreito (o mesmo que Rabigato) Praticamente não havia castas tintas.
Belmonte (Campo Albicastrense) Alva (Síria), Sedouro (Calum ou Batoca) e Folgosão Rifete, Marufo, Bastardo e Verdelho
Covilhã Sedouro (Calum), Alvar (Síria), Malvasia e Gouveio Bastardo, Rufete, Cabritalho (?) e Mortágua (Touriga)
Idanha e Penamacor (Campo Albicastrense) Alva (Síria), Malvasia e Folgosão Rufete, Mourisco (Marufo), Farnento (?) e Cabritalho (?)
Sertã Calum, Alva e Fernão Pires Mortágua (Touriga), Castelão, Baga e Mourisco

Cerca de cem anos mais tarde, por alturas de 1950, o encepamento já era diferente, mas ainda havia diversidade entre as sub-regiões, ao contrário do que acontece atualmente em que já é difícil detetar diferenças e as castas internacionais assumem um peso relevante. As tendências atuais têm levado alguns produtores a valorizar a diferença e as raízes históricas, começando a dar prioridade às castas do passado e mais identitárias, que são, nas brancas, Síria, Fonte Cal, Folgosão e Calum e, nas tintas, Rufete, Marufo, Bastardo, Touriga e Trincadeira.

Vinhos originais e muito elegantes

São múltiplos os fatores que determinam o estilo dos vinhos. O clima, solo e castas são considerados dos mais importantes, pois são a base em que assenta a criação das denominações de origem. No entanto, a sabedoria dos produtores e a tecnologia são, desde sempre, absolutamente determinantes. Assim, quando se evocam os vinhos do passado é fundamental distinguir entre vinho popular e senhorial, de características muito distintas. O primeiro sempre terá sido, desde a democratização do consumo de vinho no final do Império Romano até ao século XIX, um clarete de mistura com pouca graduação alcoólica e frequentes defeitos de prova, fruto da incipiência técnica com que era feito. Já o vinho senhorial ou o eclesial eram completamente distintos, pois eram feitos com a sabedoria dos frades, a melhor tecnologia da época e as melhores castas plantadas em locais privilegiados. Terá sido este o vinho que deu fama às várias regiões vitícolas e naturalmente à Beira Interior.

O estilo do vinho senhorial terá assumido grande relevância a partir do século XIX, quando se generalizou o uso das garrafas de vidro e foi possível envelhecê-lo nas frias caves dos solares beirões. O vinho branco não seria frutado como é hoje, pois recorria-se a uma enologia levemente oxidativa que valorizava muito mais o sabor do que o odor. Quando tinha 12 graus e elevada acidez, própria das terras altas do interior, envelhecia sumptuosamente em garrafa e tinha grande longevidade, sendo o favorito das mesas aristocráticas. Já o vinho tinto, tendo por base as castas Rufete, Marufo, Mortágua (Touriga) e Bastardo, não seria muito carregado de cor, mas também envelhecia bem, perdendo a adstringência própria da juventude, ganhando o aveludado tão característico e desenvolvendo uma enorme complexidade aromática que se refinava e mantinha durante décadas.

Presentemente, o estilo dos vinhos sofisticou-se e acompanhou a onda de modernidade que se vive no setor em todo o País. Há brancos muito aromáticos, frescos, com grande sentido gastronómico que exaltam as características das principais castas da região - Síria e Fonte Cal - e começa a haver brancos de guarda, que evoluem maravilhosamente em garrafa e evocam os dos antigos solares beirões. Nos tintos, há vinhos de estilo moderno, carregados de cor, bastante alcoólicos e cheios de aromas primários, muitos deles feitos com a ajuda de castas internacionais, mas também há vinhos das castas autóctones - principalmente Rufete, Marufo, Touriga, Trincadeira e Bastardo - com menos cor e cheios de originalidade, tanto para beber jovens como para envelhecer longamente em garrafa. E isso só é possível graças ao clima da Beira Interior, às baixas produções por hectare e ao cuidado colocado na sua elaboração.

Fonte cal e rufete, tesouros da
beira interior

São tantas e tão originais as castas antigas da Beira Interior, que não é fácil eleger uma branca e uma tinta para representar a identidade da região. Optámos, assim, por uma casta branca que (ainda) não existe em mais nenhuma região vitícola do País - a Fonte Cal - e uma casta tinta, muito antiga em toda a região, mas também muito acariciada do lado de lá da fronteira - o Rufete.

Fonte cal

O nome antigo e talvez o original desta casta é Fonte da Cal, já assim chamada, em 1790. Tudo aponta para que seja originária da região de Pinhel, onde é referenciada desde o século XVIII. Testemunha um exemplar esforço coletivo para evitar a sua extinção. Tudo começou na vinha do Instituto Nacional de Investigação Agrária plantada em 1984, na quinta de Lamaçais, graças ao entusiasmo do Eng. Raul dos Santos e ao trabalho de campo dos engenheiros Adalberto Desterro e Alberto Antunes, técnicos de Pinhel onde a casta “resistia”. As vinificações experimentais não resultaram, mas o Eng. Francisco Santos, que acompanhou o ensaio na vinha, reconheceu-lhe méritos vitícolas, nomeadamente a sua resistência aos stresses hídrico e térmico e aos terrenos pobres da região. Distribui algumas plantas por pequenos vinhateiros da Cova da Beira, nas freguesias de Ferro e Caria, mas o seu futuro só ficou garantido quando foi plantada na quinta dos Termos, em 1997. Em 2003 foi, finalmente, vinificada estreme nesta quinta para pôr à prova os seus atributos enológicos e foi um rotundo sucesso. O vinho mostrou-se magnífico, com aroma delicado, intenso, original e atraente e com uma prova de boca surpreendente, que primava pela qualidade da acidez, grande estrutura de boca e equilíbrio. Ainda hoje esse vinho é admirável, confirmando a aptidão da casta para vencer a prova do tempo. Em 2006, com a colaboração do Professor Antero Martins, da Universidade de Lisboa, plantou-se um campo de clones na Quinta dos Termos, pois era preciso “salvar” a casta. Desde então a casta passou a ser acarinhada por vários produtores da região e a produzir vinhos cheios de originalidade. Hoje é uma bandeira e um precioso tesouro vitícola, que marca de forma indelével o perfume dos grandes brancos da Beira Interior.

Rufete

Na Beira Interior é conhecida por “pai dos pobres” e basta olhar para o tamanho de um cacho e para uma cepa carregada para logo se entender a alcunha. Há meio século, numa época em que a quantidade era a palavra de ordem, justificava plenamente o epíteto e a preferência dos produtores, pois além de chegar com facilidade aos 5 kg/cepa, produz bem todos os anos, ou, como se diz no mundo rural, não é aneira. Embora seja uma casta que se identifica com a Beira Interior, também existe do outro lado da Serra da Estrela, no Dão, onde é mais conhecida por Tinta Pinheira, e como não reconhece a fronteira nem as guerras que durante séculos travaram castelhanos e portugueses, também é cultivada na província de Salamanca, na Sierra de Francia, onde há mais de vinte anos é um símbolo da identidade regional. Embora os espanhóis admitam que a casta possa ter origem na Beira Interior, cultiva-se em toda a zona serrana, sendo provável que seja uma herança dos frades dos dois lados da fronteira, que mantinham um intercâmbio frequente e uma forte influência na viticultura e produção de vinho, cobrando religiosamente a “dízima de Deus”, os foros e as rendas.

Até há cinco anos era pouco estimada na Beira Interior, sendo acusada de originar vinhos com pouca cor, delgados, muito ácidos, fracos de grau e sem capacidade de envelhecimento, não merecendo as preferências dos produtores que pretendiam renovar as suas vinhas. Porém, tudo mudou nos últimos anos, quando alguns produtores credenciados de Pinhel e da Cova da Beira decidiram entender os seus caprichos e começaram a cultivá-la carinhosamente e a vinificá-la com cuidado. Como qualquer grande casta é difícil e um desafio constante para os enólogos. Tem grande heterogeneidade clonal, havendo videiras com cachos grandes e bagos gordos e outras com cachos pequenos e bagos miúdos, cujo comportamento enológico é muito desigual. As últimas costumam dar sempre mais grau e vinhos mais corados, concentrados e aromáticos. Também não pode produzir muito, pois quanto maior a produção menor a qualidade dos vinhos. Em bons anos de colheita, quando a maturação é completa, origina vinhos excecionais, de bonita cor rubi, aroma rico, de caráter facilmente reconhecível e elegantíssimos na boca, onde impera uma acidez sedutora, irreverente adstringência e marcante flavor aromático. Não são vinhos muito longevos, que brilham mais enquanto perdura a juventude, mas que podem ganhar complexidade com alguns anos de garrafa. Felizmente, a casta começa a ser descoberta pelos produtores e consumidores, dada a sua enorme originalidade.

Textos da autoria de Virgílio Loureiro. Obrigado